quinta-feira, outubro 26, 2006

A luta contra a tecnociência

Ex-secretário-geral da Confederação Camponesa, René Riesel, julgado pelos mesmos “delitos” que José Bové, corre o risco de purgar uma pena de seis meses de prisão por sabotagem de culturas transgênicas. Ele se recusa a pedir qualquer redução da pena

Thomas Feixa
Ao sindicalismo de “negociação”, “responsável” e “consensual”, Riesel opõe uma cultura da “sabotagem”, favorável à multiplicação de movimentos selvagens

De que constelação teórico-prática saiu a dissidência de René Riesel? Dos discípulos de Ned Ludd1*, da Comuna de 1871, mas também da revolução de 1956, na Hungria, da Internacional Situacionista, da qual participou antes de ser expulso por Guy Debord e, enfim, dos “revolucionários” de 1968, dos quais foi um dos principais dirigentes2 . De um modo mais amplo, de um marxismo revolucionário determinado, o do Marx teórico da anarquia, partidário do desaparecimento do Estado, que escreveu, em A guerra civil na França: “A Comuna não foi uma revolução contra uma forma qualquer de poder do Estado, legitimista, constitucional, republicano ou imperial. Foi uma revolução contra o Estado como tal, contra esse aborto monstruoso da sociedade.”

O que convém exumar, agora, é toda uma tradição antiautoritária (antitrotskista, antistalinista, antimaoísta), tradição que, há muito tempo – se lembrarmos do nascimento, em 1949, do grupo revolucionário “Socialismo ou Barbárie” – já denunciava a burocratização de um sindicalismo que se tornava uma simples instância de controle e de gestão da contestação32. A esse sindicalismo de “negociação”, “responsável” e “consensual”, deveria se opor, segundo Riesel (que usa essa palavra), uma cultura da “sabotagem”, favorável à multiplicação de movimentos selvagens – no sentido de greve selvagem, ou espontânea, quando os diversos “aparelhos” são surpreendidos e se tornam ineficazes.
Contestação só pode ser radical
“Sabotar” significa entrar na contramão do catecismo bem-comportado de uma “contestação cidadã”, polida, festiva, que rompe com uma tradição “arcaica”

“Sabotar” aqui e agora, sem maiores rodeios, significa entrar na contramão do catecismo bem-comportado de uma “contestação cidadã”, polida, festiva, que se vangloria de romper com uma tradição considerada “arcaica”, por ser extremamente conflituosa e correr o risco de se assemelhar à tumultuada história do movimento operário. “Contestação cidadã”: o epíteto, transformado em fetiche, vem modificar o nome, dar-lhe uma consistência mais polida. Produz uma imagem tranqüilizadora do social justamente no lugar em que essa segurança deveria oscilar. “Estado, sempre mais Estado” seria o grito de guerra do “ator cidadão”, para quem uma boa regulação da economia, um justo controle do capitalismo, uma correção de seus excessos (e não de seu princípio) constituem uma solução para o problema social, como se este fosse simplesmente da mesma natureza que uma equação matemática.

Maquiavel já denunciara o caráter fantasmagórico da atração do “bom regime”, de seu culto, da possibilidade de acabar com o tumulto, do horizonte permanente de uma solução positiva encontrada, finalmente, na divisão social43. Denúncia sem grandes conseqüências, uma vez que se alguns esperavam uma “boa burocracia”, outros ainda esperam um “bom quadro sindical” ou então um “bom patrão”, para falar a verdade, um “bom amo”.

Se contestar só pode ser compreendido num sentido radical (contra o Estado e indissociavelmente contra o dinheiro), é preciso dar as costas aos “que sonham adaptar os homens ao inferno moderno, alterando a natureza dos genomas, e aos que desejam discutir democraticamente modalidades dessa adaptação”. A palavra “modalidades” revela a fragilidade de todo reformismo, aceitação implícita da ordem estabelecida, sob a proteção de algumas emendas, sempre apresentadas como grandes avanços. “O que se quebra, definitivamente, é a ilusão de que haveria diversas maneiras, complementares, de se opor à natureza genética: algumas delas, ‘extremistas’, sabotam a pesquisa e a difusão de necrotecnologias, e outras, ‘táticas’, exigem a percepção das origens, competência e controle”, escreve Riesel.
As quermesses humanistas
As “modalidades de adaptação” revelam a fragilidade do reformismo, a aceitação implícita da ordem estabelecida, sob a proteção de algumas emendas

Por meio da sabotagem do Centro de Cooperação Internacional em Pesquisa Agronômica para o Desenvolvimento (Cirad), instituição pública de pesquisa agronômica, o Estado foi contestado enquanto instância neutra de arbitragem. Ou melhor, ele foi “pego com a boca na botija do que produz”. Na verdade, a tese de uma pesquisa pública intocável – por ser intrinsecamente pura e virtuosa – encontra-se aqui em maus lençóis. A instituição científica pública (e não somente alguns obscuros laboratórios particulares) se insere, de fato, na dinâmica da privatização da vida via a disseminação de organismos geneticamente modificados em ambiente aberto. Uma privatização que se traduz, na prática, pela esterilização de sementes pela Monsanto, pelas ações judiciais contra os poucos camponeses que, apesar de tudo, em um gesto “retrógrado”, conservaram o que ressemear.

Não daria para falar de um verdadeiro projeto de dominação total? O de um “cientificismo utilitarista e redutor, que só admite quando domina, que não sabe imaginar nada que seja gratuito, não patenteável, não manipulável”? Em resumo, uma “tentativa de suplantar a natureza (externa e interna ao homem), de eliminar a última resistência à dominação do racionalismo tecnológico”. Riesel não pára de enfatizar a ligação entre o gigantismo tecnocientífico e a religião do progresso, em que, como Hannah Arendt deixa claro, se lê uma vontade de acabar com qualquer singularidade para não ter mais necessidade senão de si mesmo, de suas próprias operações54. A denúncia da espiral delirante do “artificialismo” não tem por objeto produzir, em um pólo diametralmente oposto, a imagem dourada de uma resistência que, fundamentalmente (mas não apenas), por meio da figura de José Bové, se teatraliza e parece se deixar pegar pela armadilha da personalização. Será que se conserva uma coerência política quando, ao denunciar, com toda razão, a devastação do ultraliberalismo, não se hesita em se inserir, ao mesmo tempo, na lógica da moda dos talk shows liberais? Ainda mais porque essa lógica entusiasma: nas quermesses humanistas acontece o grande baile dos “especialistas” no salão do tribunal. Mas, concretamente, como perguntaria Jacques Rancière, autor de La nuit des prolétaires, poderiam existir especialistas em igualdade ou em liberdade65?
Relançar a questão da emancipação
Será que se conserva uma coerência política quando se denuncia a devastação do ultraliberalismo, mas se aceita a lógica da moda dos talk shows liberais?

Esse turbilhão dos meios de comunicação deve ser comparado à dinâmica específica do capitalismo, do reino da indústria cultural e de sua capacidade de digerir tudo, inclusive a subversão. Atualmente, o mercado da inquietação e da contestação carrega consigo um espectro muito amplo, de “princípios éticos” até canções de protesto de roqueiros contratados por alguns malandros transnacionais. Riesel explica: “Não se vai tentar acalmar a inquietação, pois ela se tornou um motor econômico e social reconhecido. Deve ser feito um empenho em avaliar a demanda social de proteção, em mostrar que o ‘risco’ é a condição, senão a essência, da sobrevivência em uma sociedade industrial, a única coisa que realmente dá seu preço às mercadorias garantidas. Ouviremos os ambientalistas e o ‘terceiro setor’, passaremos o microfone aos que trabalham com epistemologia – afinal de contas, são especialistas! –,os doutores em ética poderão concluir criticando os adoradores do bezerro de ouro.”

O que um tribunal condena, o motivo pelo qual um movimento pode ser perigoso para a ordem estabelecida e constituir, de fato, um contra-poder efetivo, não são “almoços de piquenique uma vez que a polícia esteja instalada”. Desde já, longe do folclore do “trotar dos cidadãos”, mas também distantes da vertigem histórica da imitação, segundo Riesel, temos de reinventar práticas políticas não domesticadas. Relançar, em novas bases, a questão da emancipação.


1 - N.T.: Ned Ludd foi um dos líderes operários no movimento de quebra das máquinas na Inglaterra, em 1811-1816, conduzido pelos que as consideravam causa da redução do emprego. O termo “luddita” passou a ser utilizado para designar qualquer oponente às mudanças tecnológicas.
2 - Quando citarmos René Riesel, vamos nos referir às suas duas obras publicadas pela Enciclopédia dos nocivos: Déclarations sur l’agriculture transgénique et ceux qui prétendent s’y opposer (2000), Aveux complets des véritables mobiles du crime commis au Cirad le 5 Juin 1999 ( Junho de 2001). Sobre os discípulos de Luddite, ler, de Kirkpatrick Sale, “Résistances américaines aux nouvelles technologies ”, Le Monde diplomatique, fevereiro de 1997.
3 - Ler, de Philipp Gottraux, Socialisme ou barbarie : un engagement politique et intellecuel dans la France de l’après guerre, Editions Payot, Lausanne, 1997.
4 - Ler, de Claude Lefort, Le travail de l’œuvre. Machiavel. Paris, Gallimard, 1972.
5 - Ler, de Etienne Tassin, Le trésor perdu. Hannah Arendt l’intelligence de l’action politique. Paris, Payot, Critique de la politique, 1999.
6 - Jacques Rancière, La Nuit des prolétaires: archives du rêve ouvrier, Fayard, Paris, 1981.

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