Juca Martins, por Luis Pereira
Abaixo, a entrevista de Juca ao jornalista Luis Pereira
A Ideia
A impressão que tenho é que, quando não os conhecemos pessoalmente, pouco podemos saber sobre a figura de certos fotógrafos. Podemos conhecer seus trabalhos, suas técnicas, de certa forma seus gostos e até (por que não?) suas ideologias. Mas por estarem, obviamente, na maioria esmagadora das vezes por detrás das lentes, suas figuras tornam-se um tanto desconhecidas. E, quando falo em “figuras”, trago sentindo mais abrangente do que apenas aspecto físico.
Este foi o pensamento que tive quando eu e Massao Uehara, amigo e fotógrafo, resolvemos entrevistar Juca Martins, uma espécie de lenda viva do fotojornalismo brasileiro. Conhecíamos o seu trabalho e seus gostos dentro da profissão, tínhamos uma boa noção de suas técnicas e sabíamos por que certos rios corriam suas ideologias, mas não tínhamos ideia do que encontraríamos ao bater em sua porta.
Lembro-me bem de um diálogo que tive com Massao poucos dias antes da entrevista, em que discutíamos a pauta e bolávamos estratégias para enriquecer o encontro. Na ocasião, Massao sugeriu que pedíssemos ao Juca que fizesse um auto-retrato para que pudéssemos ilustrar a matéria. Chegamos à conclusão, embora, de que este pedido dependeria muito da “figura” Juca Martins, ou seja, de sua personalidade, características, disponibilidade, boa vontade, humor ou, para falar em português claro, de ele ser uma pessoa chata ou não.
E nossa preocupação não era leviana. Para possíveis incautos que nunca ouviram falar em Juca Martins, traço um breve panorama: fotógrafo profissional desde 1970, vencedor do Prêmio Esso de Fotografia, duas vezes vencedor do Prêmio Nikon e vencedor do prêmio Vladimir Herzog de Direitos Humanos com a cobertura da guerra civil de El Salvador. Difícil mensurar o tamanho do ego de um profissional tão aclamado sem antes conhecê-lo pessoalmente.
Em meio a uma verdadeira amálgama de ideias e sentimentos temperados com muita ansiedade, marcamos o encontro para as 16h do dia 17 de fevereiro. O destino era a agência Olhar Imagem – localizada no número 1057 da Rua Apinagés, em Perdizes -, da qual Juca é, além de fundador, editor e fotógrafo.
O Itinerário
Em pleno verão, o dia 17 amanheceu aberto. Ao meio dia, o Sol raiava tão forte que parecia derreter o asfalto paulistano. Um leve cheiro de betume pairava no ar. Meu itinerário partiu do Centro no ônibus Apiacás, em que aproveitei para elaborar mais algumas perguntas para o nosso ilustre entrevistado. Em menos de 20 minutos já estava em Perdizes, onde encontrei Massao e rumamos à procura da Olhar Imagem. Na Apinagés, ao acharmos o número 1057, deparamos-nos com uma espécie de edícula lateral suspensa a um empreendimento vizinho, quase um puxadinho, em que uma escada em “L” dava acesso à agência.
Aos sons de minhas palmas, apareceu Paula, a simpática assistente de Juca que intermediou o encontro. Sorridente, ela nos convidou para entrar.
A Chegada
O lugar era pequeno, escuro e quente – a temperatura cingia os 30 graus. Num espaço de aproximadamente 10 metros de comprimento por cinco de largura, a agência parecia funcionar por “teoria do caos”: havia livros por todos os cantos, algumas poltronas próximas à porta de entrada e duas mesas equipadas com modernos macintoshs, uma logo no começo do cômodo e a outra localizada no outro extremo da sala. A primeira era a mesa de Paula, e a segunda, de Juca. E lá estava ele, compenetrado, de semblante austero e aparentemente indiferente com a nossa chegada.
Sem delongas, entretanto, foi ao nosso encontro. Cumprimentou-nos sério e talvez um pouco desconfiado.
Juca convidou-nos para sentar. Sentei-me a sua frente, e Massao ao meu lado direito, de onde dispararia os flashs de sua Canon. Paula, a assistente, sentada em sua mesa e concentrada em outros trabalhos, sugeriu que ligássemos o ar condicionado. Comemorei tacitamente a sugestão, que foi negada por Juca. De calça jeans, botas e camisa de manga comprida abotoada até o pescoço, esbravejei em silêncio.
A Conversa
Para quebrar o clima de tensão, liguei o gravador e emendei logo uma pergunta: “De onde veio o interesse pela fotografia?”. Juca respondeu, então, que o interesse veio das artes plásticas em geral, e a foto foi uma junção de duas paixões, a arte e a viagem. “Na adolescência, meus ídolos sempre foram os impressionistas franceses, como Van Gogh, (Charles) Gogin, Toulouse Lautrec, então o meu caminho natural seria um artista gráfico, desenhista ou coisa do tipo. Quando juntou o gosto pela viagem, do repórter, foi tudo muito natural, foi um caminho dando sequência para o outro”, explica.
Conversamos em seguida sobre o início da sua trajetória profissional. Juca contou-nos que ingressou nos grandes veículos do país como qualquer outro profissional, ou seja, trabalhando e apresentando o seu trabalho. Em suas palavras: “tirava as fotos, montava um portfólio e levava para os veículos. Uns gostavam e publicavam, outros não”.
Aproximadamente 20 minutos depois do início da entrevista, o clima de tensão dava lugar a um prazeroso bate-papo, e a desconfiança mútua a uma avenida de sentimentos de mão única: respeito, por parte do entrevistado; e admiração, por parte dos entrevistadores.
Assomava, naquele instante, a “figura” Juca Martins.
A Entrevista
Quais são suas principais influências na fotografia?
Todos os grandes documentaristas. Você pode começar pelo (Henri Cartier-) Bresson, passando pelo (Josef) Koudelka, com todos aqueles trabalhos com ciganos. O cara que me ensinou a fazer ensaios fotográficos foi o Eugene Smith, com Minamata e aqueles trabalhos que ele fazia para a revista Life. Essas são as influências em preto e branco, documentaristas. Do colorido, para mim, uma grande influência é o Ernst Haas, que é muito clássico, tem plasticidade, grafismo. E mais recentemente alguns coloristas como Steve Mccurry, que no momento atual é o meu grande ídolo. O Mccurry faz muitas matérias na Ásia com o National Geographic, como aquele rosto da menina afegã, que é famosíssimo. Se você pegar hoje o trabalho do Mccurry, ele segue a linha de passar despercebido. Você pega o livro dele do Afeganistão, que tem uma realidade difícil para um ocidental, nas fotos você sente que ele é um afegão, que ele é íntimo daquelas pessoas. Ele chegou bem, de maneira respeitosa, foi bem recebido, então é nisso que eu vejo o olho do repórter, que não é agressivo, que participa da realidade.
Ele é praticamente um elemento invisível ali?
Exatamente! Ele não perturba, ele contribui. Outra coisa interessante é que 90% do trabalho dele é feito entre uma 28 e uma 85 milímetros, então a gente percebe que o grande trabalho muitas vezes nem precisa de grandes teles nem super grandes angulares. É muito mais simples.
O que você acha da transição da era analógica para a digital?
Eu acho que a era digital trouxe um “puta” avanço. Eu não voltaria nunca para o filme, não teria a mínima necessidade. Eu lamento o digital ter demorado a chegar, porque no período em que eu cobri diversos problemas sociais brasileiros, como as greves, a tecnologia digital teria me ajudado muito. Eu cobri greves de bancários num trabalho em que ficava 12 horas na rua e não parava nem para comer. Imagina um equipamento em que você coloca quatro ou oito gigas (Gb de memória) dentro da câmera e fotografa sem parar. Se a luz cai, você altera a asa. Se a luz sobe, você a diminui. Tudo isso quadro a quadro. No filme não existia isso. Eram sempre duas câmeras para um filme não coincidir com o término do outro para você não perder foto. No tempo de rebobinar, você não está clicando. Tinham várias desvantagens. Para fazer cor, quando as luzes mudavam, você tinha que usar filtros para correções. Eu perdia filtros no meio da confusão, arrancava o UV, botava outro filtro. Agora com as câmeras modernas, elas têm um automatismo de balanço de branco que ajusta para o kelvin que está no momento. Isso é uma maravilha.
Você fotografa com que máquina?
Hoje estou com uma Nikon D3. Faço 3200 asas com ela melhor do que com o antigo (filme) tri-X que eu usava na época de P&B (Preto e Branco), e com menos granulado. Inacreditável, eu não preciso mais usar flash, nunca gostei de flash. Então, só tenho elogios ao digital. Seja bem vindo, demorou.
Fotografia artística X jornalística?
Para mim a fotografia artística é sempre um segundo produto da minha foto. A minha foto tem sempre que primeiro transmitir. Não precisa necessariamente ser o hotnews do dia, mas tem que ter alguma coisa factual, tem que ser temática. Ou ela se enquadra em economia, agricultura, transporte, indústria, ou num tema social ou em festa, lazer, segurança, qualquer um desses temas. Eu parto desse princípio. A partir daí é que a foto pode merecer o finearts ou não. Mas eu perseguir a foto como finearts, como exposição, não. E nem edito isso na Olhar Imagem. Quer dizer, o que nos motiva é isso que eu te falei, que é a coisa temática.
Pode citar algum exemplo?
Fizemos recentemente um grande ensaio sobre botânica, que pulou de 300 fotos para 1200. Tem várias fotos neste ensaio que vejo potencial para exposição. Tem fotos muito gráficas de flores desmontadas, mas o objetivo deste trabalho era ser didático. Ou seja, mostrar como as folhas são, o que tem dentro delas, que partes a compõem. Uma coisa informativa, educacional para as crianças e para adultos. O que vai nos motivar aqui vai ser sempre esta qualidade da fotografia informativa. Depois, se merecer uma galeria, tudo bem, não temos nada contra, mas não estamos atrás disso.
O que você acha da tendência atual de se valorizar o lado tecnológico e instrumental fotográfico em detrimento da personalidade artística e humanidade do fotógrafo?
Eu acho que é uma tendência que não vai durar muito tempo. Essa é uma coisa que não tem muito conteúdo e se esgota rapidamente. Acho que existe um burburinho em cima de formatos, de captura, e a parte de conteúdo que se transmite através das imagens está ficando de fora. Mas a longo prazo não tem muito jeito, porque as únicas fotos que vão permanecer são exatamente as que tem conteúdo. Você produz um material vazio que pela técnica causa aquele impacto imediato, mas que em pouco tempo acaba sendo esquecido, não permanece. Então isso não leva a nada.
Como foi estar no meio de uma guerra civil como a Guerra de El Salvador?
Um horror, uma coisa que não recomendo, extremamente perigoso. Agora, no meu caso foi uma experiência que fez parte de uma continuidade de um trabalho que já fazia com a cobertura de conflitos sociais aqui no Brasil. Foi como se fosse um estágio para mim, que considerei um caminho natural de um fotorepórter. Acredito que cobrir um conflito, seja ele uma guerra civil, faz parte da formação de um fotorepórter. Então, para mim, teve esse sentido. Agora, a coisa em si, em que você vê pessoas morrendo, violência, luta armada interna dentro de um país, é um horror. Então, neste ponto de vista tem um lado emocional que é sofrido.
Qual foi o principal aprendizado dessa experiência?
Acho que a guerra deu a dimensão maior para o humano e menos para o autor e para o artista. Isso, no meu ponto de vista, foi bom. A guerra me fez refletir que o importante é o homem e não a obra. Eu corri risco de vida para conseguir uma foto que nem sabia se iria conseguir. Então, aquela foto que você conseguiu com risco de vida não vale a pena. A vida é mais importante do que a foto.
Você ficou, de alguma forma, deprimido com as guerras que você cobriu?
Dá aquela tristeza, mas não é a guerra em si. Aqui mesmo no Brasil faço várias coberturas que me deixam triste também. Eu acabei de fazer uma matéria para o (jornal) Miami Herald, dos EUA, sobre o momento atual da crise econômica. Então a gente andou em sindicatos, viu várias pessoas que tinham acabado de perder o emprego. Portanto, nós, jornalistas, temos contato com essa realidade que é sofrida. Então a guerra é a culminância dos erros e da loucura humana. Mas a loucura humana está presente no dia a dia. Nós lidamos com isso desde o dia em que nascemos até o final da vida. A gente tem que saber lidar com essas contradições.
Em sua opinião, o que uma pessoa tem que ter para ser um fotógrafo hoje e sempre?
Tem que ter vivência humana, ser um humano ligado, integrado com o seu tempo, com sua vida e seus problemas. E, na parte técnica, uma maquininha de 24 a 120mm (distâncias focais), um bom olho sempre ligado no lado social e pronto. Esse é o primeiro passo. Outra coisa que eu recomendo é ler os livros do Sherlock Homes, porque ele se interessa pelos casos, é observador e seria um ótimo fotógrafo (risos). Ele tira conclusões observando as pessoas, os ambientes. Por exemplo, quando ele vai fazer uma investigação, coloca uma roupa para o ambiente aonde vai, para não chamar a atenção, tudo coisas que um bom repórter deveria fazer. O Sherlock Homes, se ele vê alguma coisa que o interessa, no outro dia ele já pega um trem, vai até o local, examina tudo. Isso é o próprio repórter. Daí ele vê o personagem, a roupa que ele está vestido, se tem sujeira no sapato, a cara da pessoa, os móveis dela, como ela fez o arranjo etc. Disso, você vai tirando elementos para compor a sua imagem. Então, leia Sherlock Homes!
Além dessa dica, tem algum conselho para quem está iniciando na profissão?
Como começar profissionalmente é o velho caminho de todo mundo. Você precisa ter um portfólio para apresentar num jornal, numa revista ou em qualquer outra publicação. Então, o negócio é preparar um portfólio mínimo, com cerca de 30 fotos de quatro ou cinco temas diferentes e depois telefonar, mandar currículo e esperar ser recebido. É importante também tomar certo cuidado para não queimar um cartucho com um contato inoportuno. Nos dois anos iniciais, a dificuldade em publicar é um pouco maior, mas, depois da primeira e da segunda publicação, o trabalho começa a fluir e a bola de neve a crescer e rodar.
Quais são os seus planos futuros, seus próximos trabalhos?
Em termos de autor não muita coisa. Estou muito mais envolvido nos últimos seis anos com a construção da Olhar Imagem, que eu acho que hoje já estamos situados entre as melhores, inclusive com agências que estão há mais tempo por aí. Eu já estou há algum tempo não aceitando trabalhos contratados. Só aceito quando ele está na linha da pauta da Olhar Imagem. Minha ideia é fortalecer cada vez mais a agência como um banco de documentação do Brasil, quase uma fototeca. Como as imagens estão em baixa, você não tem login, qualquer estudante, qualquer pessoa pode usar para estudar e aprender. Para isso está liberado, a gente está montando um negócio que tem essa finalidade educacional. Se alguém quiser fazer um trabalho para a escola sobre Fernando de Noronha, é só baixar a foto em alta. Então, essa é a idéia central, montar essa poderosa fototeca sobre o Brasil, que possa ser consultada e utilizada com finalidade não comercial. E quem usar comercialmente – com as editoras, anúncios, agências de publicidade, empresas-, paga. o comercial e quem usar comercialmente, editoras, ancolar.a a sua escola sobre Fernando de Noronha, vai lares
A Figura
De estatura mediana, magro e aparentando seus cinquenta e poucos anos, Juca traz na fisionomia e disposição de espírito marcas de pessoa vivida.
A barba estava por fazer, e o olhar, atento e invocado. Os dentes amarelados denunciavam o hábito da nicotina. Sua voz, ligeiramente rouca – talvez outra herança do cigarro -, mantinha entonação mansa, porém incisiva.
Vestia chinelos, bermuda cáqui e uma camisa de manga curta branca desabotoada no peito. A forma simples de se vestir e falar já me dizia um tanto sobre sua figura.
Fiz-lhe uma pergunta a respeito de seu sucesso, ao o que ele atribuía seus prêmios e a tamanha notoriedade que ganhou na profissão. Espontâneo, suas palavras soaram intimamente verdadeiras: “não dou muita importância para isso. Talvez o segredo do sucesso seja não se preocupar com ele, deixá-lo de lado e fazer o que precisa ser feito. Eu não vou perseguir o sucesso, mas também não vou desprezá-lo se ele vier”. Isso me dizia mais sobre Juca.
Massao e eu chegamos na Olhar Imagem cheios de dúvidas com relação à figura de Juca Martins. Em certo momento da entrevista, tínhamos a plena consciência que, mais do que estar frente a frente àquela lenda viva do fotojornalismo, estávamos diante de uma pessoa humilde com um grande exemplo de vida. Com esta convicção, encontrei um bom momento para fazer a proposta do auto-retrato (acima mencionado). Não pela soberba, mas visivelmente embevecido pela vergonha, Juca negou: “sabe o que é, não é muito a minha, meu negócio é atrás das lentes”. Sem problemas!
Fecho
Juca é um exemplo vivo de que o sucesso é mero acaso do gosto pela vida e pelo trabalho, pelo o que se faz. Poucos sabem que Juca foi por conta própria para as guerras que cobriu. Ou seja, colocou seu dinheiro, seu tempo e, principalmente, seu coração no fogo cruzado.
Diante da presunçosa desconstrução – e posteriormente construção – da “figura” Juca Martins que proponho desde o início deste texto, peço licença para proferir um, ainda mais pretensioso, veredicto: simplicidade e erudição!
Da simplicidade e da vontade, Juca desenvolveu uma carreira de originalidade e requinte, equação aparentemente simples, mas de difícil execução à margem do próprio umbigo. Em função disso, hoje ele desfruta de conhecimentos profundos e atualizados. Um verdadeiro mestre da fotografia.
Juca é simples e erudito porque priorizou a experiência de vida e a busca pela sabedoria ao invés do acumulo de bens materiais. E não se enganem, simplicidade e erudição na mesma panela é tempero complexo, para paladares aguçados, cujo sabor, peculiar, torna-se indefinível para borra-botas. Utilizo-me desta simples metáfora para concluir esse texto, quase uma tese, sobre uma grande figura. E se não me faço compreender, aproveito para parafrasear um gênio: “A simplicidade é o mais elevado grau da sofisticação” (Leonardo da Vinci).
Marcadores: ras
0 Comentários:
Postar um comentário
Assinar Postar comentários [Atom]
<< Página inicial